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José Sarney: o falso e o verdadeiro

Jornalistas e historiadores lidam com insumos comuns: os fatos, as informações, os relatos e as interpretações.

Essa matéria prima, trabalhada, elabora os registros que ao longo do tempo viram referência para o conhecimento da realidade.

Se um estudante do Ensino Médio que se prepara para o Enem ar hoje a maioria dos sites de notícias e postagens (até de respeitadas pessoas públicas nas redes sociais!), vai se deparar com a celebração de uma personagem – José Sarney – associada à redemocratização do Brasil.

A personagem também é retratada como uma referência de virada histórica vinculada aos princípios republicanos e às boas práticas da política.

É quase uma unanimidade, construída com imprecisões históricas, boa vontade, elogios e bajulações descaradas.

Faz sentido dizer que o então vice-presidente José Sarney, em 1985, foi sim o condutor do processo de transição da ditadura para a democracia, no contexto do Colégio Eleitoral, em circunstâncias muito especiais após a morte do presidente Tancredo Neves.

Naquela época, meados dos anos 1980, o Brasil estava dividido em dois campos políticos: o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), reunindo a heterogeneidade das forças progressistas em prol da abertura política; e a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido criado pela ditadura militar para abrigar as velhas elites do Brasil escravocrata e corrupto.

O MDB defendia eleições diretas para presidente, um grande movimento popular denominado “Diretas Já!”.

A Arena, obviamente, era contra as eleições diretas.

E onde José Sarney fez carreira na política? Na Arena, reduto de tudo que não prestava do regime militar.

Como já dito, ele chegou à Presidência da República de forma atípica. Era vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, que morreu antes de assumir o mandato.

José Sarney tomou posse em 1985 e conduziu a transição democrática.

Não há como negar esse fato consumado nos autos da burocracia do Congresso Nacional.

Mas, uma coisa é esse registro. Outra coisa é anistiar José Sarney das suas vinculações históricas com o campo conservador e a extrema direita remanescente de 20 anos da ditadura militar que ele ajudou a manter.

Isso também está nos autos.

Reitero: não há como negar que houve a transição de um regime de exceção (ditadura) para a retomada do Estado Democrático de Direito. É um fato incontestável, com um detalhe: naquele Colégio Eleitoral de 1985, a chapa Tancredo Neves/José Sarney foi batizada de Nova República, nome pomposo para rebatizar a velha burguesia no poder.

José Sarney costuma dizer que não teve inimigos. É verdade sim! Ele teve amigos, correligionários, parceiros e aliados, todos afinados à multiplicação das injustiças, das desigualdades e da miséria.

Entre os amigos constam alguns que merecem destaque, como registra o importante texto da Agência Tambor:

“O general Leônidas Pires Gonçalves foi Ministro do Exército no governo de José Sarney, entre 1985 e 1990.

Antes disso, entre 1974 e 1977, Leônidas dirigiu o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), no Rio de Janeiro.

Foram agentes desse mesmo DOI-CODI do Rio de Janeiro que, em 1971, sequestraram, torturaram, mataram e deram sumiço ao corpo do engenheiro civil Rubens Paiva, cujo drama foi exposto no filme Ainda Estou Aqui, recentemente premiado no Oscar.

[…]

Ocupando o cargo de Ministro do Exército no governo de José Sarney, em 1985, o general Leônidas divulgou uma nota pública em defesa de Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Coronel do Exército, Ustra atuou no DOI-CODI de São Paulo e, a partir de 1985, ou a ocupar cargo no governo de José Sarney, inicialmente como adido militar na embaixada do Uruguai. Lá, foi reconhecido e denunciado como torturador.”

Cabe mencionar também outro relevante amigo de José Sarney: o oligarca da Bahia Antônio Carlos Magalhães (ACM), que foi Ministro das Comunicações e conduziu a chamada farra das concessões de canais de rádio e televisão para os amigos dos amigos do presidente no Congresso Nacional.

O episódio foi um dos grandes escândalos de patrimonialismo e clientelismo do Brasil, usando as concessões públicas para beneficiar grupos privados de comunicação, criando o chamado “coronelismo eletrônico”.

Foram distribuídas 1.091 concessões para emissoras de rádio e TV, parte delas servindo como moeda de troca aos parlamentares que votaram a favor do mandato de cinco anos de presidente para José Sarney.

Inimigo mesmo ele só teve um: o povo. Basta olhar o Maranhão, um pequeno recorte do Brasil, onde a pobreza e a miséria seguem firmes.

Em tempos de desinformação, cabe ao Jornalismo e à História fazerem os devidos registros ajustados aos fatos, nas suas conjunturas, sem perder de vista a estrutura do Brasil colonial e escravocrata.

Diante do crescimento vertiginoso da extrema direita em escala mundial, muitos fazem parte da legião da boa vontade que coloca José Sarney entre os grandes democratas brasileiros.

Por causa de um “inimigo maior”, o bolsonarismo, o campo progressista vai ajustando a narrativa e os arranjos da política para inserir o último coronel do Brasil na galeria da democracia.

São tempos difíceis, mas, em síntese, tem um José Sarney falseado e o verdadeiro. Este último foi amigo do general Leônidas Pires Gonçalves e do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Vou ficando por aqui ajustando um bordão apropriado para nosso tempo.

Sem anistia para os golpistas.

E sem anistia da História para os parceiros, amigos e correligionários dos golpistas de sempre.

Imagem destacada: José Sarney e o general Leônidas Pires Gonçalves: amigos da ditadura militar. Fonte: Agência Tambor

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Do jornalismo tendencioso à indústria da mentira: Constituição completa 30 anos e mantem travada a legislação sobre comunicação

Três décadas após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, a comunicação, um dos temas fundamentais para consolidar os sentidos de República e democracia, permanece quase inalterado e até mutilado.

Na Carta Magna os eixos sobre comunicação ainda não foram sequer regulamentados.  Dois exemplos são gritantes. O artigo 220 proíbe as práticas de monopólio e oligopólio. Já o artigo 221 manda as emissoras de rádio e TV darem preferência a finalidades artísticas, informativas, educativas e culturais, além de valorizar a produção regional e independente.

Deputados federais e senadores proprietários de emissoras de rádio e TV, os coronéis da mídia, operam em causa própria dentro do Congresso Nacional para que a legislação garanta os seus privilégios no uso e abuso dos meios de comunicação para fins empresariais e eleitorais.

O coronelismo eletrônico atropela a própria Constituição e estende-se mesmo às pequenas rádios comunitárias, impedidas por legislação complementar (nº 9.612/98) de fazer proselitismo político ou religioso, mas controladas por grupos políticos municipais e igrejas evangélicas, salvo as honrosas exceções.

O Brasil ainda é o país onde vigora a concentração empresarial e o uso de verba pública para conduzir apoio político-eleitoral aos mandatários municipais, estaduais e ao federal.

Nem nos governos do PT este vício foi alterado. Lula e Dillma seguiram a mesma cartilha dos tucanos e seus antecessores, privilegiando as Organizações Globo na fruição do dinheiro público.

O mais primitivo de todos, José Sarney, abusou da distribuição das concessões de rádio e TV para negociar o mandato presidencial de cinco anos.

Jair Bolsonaro, por sua vez, faz ameaças explícitas aos meios de comunicação e até insinua usar o controle das verbas publicitárias para coagir linhas editoriais.

Nesses 30 anos, bons ventos sopraram quando da realização da I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, reunindo quase 1500 delegados e delegadas dos segmentos empresarial, estatal e os movimentos sociais para debater, entre outros temas, a regulamentação dos temas da comunicação na Constituição de 1988.

Depois de quatro dias de debate e quase 600 proposições aprovadas, quase nada efetivou-se. Até mesmo o Conselho de Comunicação Social foi apropriado pela burguesia radiodifusora.

O país perdeu o time de sistematizar regras minimamente democráticas e republicanas para as comunicações. Agora está tomado pela indústria da mentira deslavada solapando o jornalismo tendencioso.

Nosso problema civilizatório nem é mais a força das Organizações Globo, mas o império das fake news decidindo a eleição para o cargo mais importante da República.

Imagem: reprodução / capturada neste site