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Filhos separados pela hanseníase, mães dilaceradas e um corpo desaparecido

Texto e fotos: Ed Wilson Araújo e Marizélia Ribeiro, professores pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão

Joana Terezinha de Freitas foi internada na Colônia do Bonfim em 1972 e deu à luz Manoel de Jesus Freitas, separado da mãe e entregue aos cuidados do Educandário Santo Antônio (Sociedade Eunice Weaver do Maranhão), em São Luis.

Em 1973 a criança foi dada como morta, mas a família nunca recebeu a certidão de nascimento nem o atestado de óbito. Até hoje, não há informações sobre internação hospitalar e o local onde o corpo teria sido enterrado.

O Ministério Público Federal (MPF), através do Inquérito Civil nº 1.19.000.000620/2024-05, está apurando o caso.

A reportagem mostra o envolvimento de presidentes do Educandário Santo Antônio (ESA) em duas adoções de bebês internados na instituição em 1972 e 1977.

Era 17 de outubro de 1972 quando um jipe azul e preto chegou à casa de Joana Terezinha de Freitas, em Miranda, na época um povoado do município de Itapecuru, a 137 quilômetros de São Luís (MA). Ao ver o carro, a vizinhança, temerosa, fechou as portas. Joana Freitas, diagnosticada com “lepra lepromatosa” quando estava grávida do seu décimo filho, aos 40 anos de idade, foi transportada para o leprosário Colônia do Bonfim (depois Hospital Aquiles Lisboa), lugar onde ficavam confinados os hansenianos do Maranhão.

Guia de internação de Joana Teresinha Freitas, em 09/10/1972
Relatório mostra que Teresinha de Jesus Freitas internou grávida de sete meses na Colônia do Bonfim

A sétima filha da família, Maria das Dores Freitas Marinho, a Dorinha Marinho, nunca esqueceu a cena da despedida. Ela e os irmãos se abraçaram, chorando, enquanto o pai, Ângelo Elesbão Marinho, preparava uma grande fogueira no quintal para queimar a cama, o colchão, as roupas e os outros objetos pessoais da esposa, atendendo à política de desinfecção dos doentes.

Naquela época, a lepra já não era mais doença de isolamento compulsório, segundo o Decreto nº 968, de 7 de maio de 1962, mas no Maranhão ainda imperava a política sanitária de desinfecção e isolamento dos doentes imposta pela Lei nº 610, de 13 de janeiro de 1949, do governo Eurico Gaspar Dutra.

Joana Freitas morou cerca de cinco anos na “cidade” dos hansenianos de São Luís, construída na Ponta do Bonfim, em 1937. Era um local ermo, de difícil o e bem vigiado, como determinava a política sanitária de isolamento social vigente. A Colônia do Bonfim tinha istração semelhante a uma prefeitura e sediava um convento para as freiras da Ordem Vicentina. As vicentinas faziam a conexão entre a Colônia do Bonfim e o Educandário Santo Antônio (Sociedade Eunice Weaver do Maranhão) sobre a transferência dos recém-nascidos, o fluxo das visitas e as informações sobre os filhos separados.

O nascimento e a suposta morte de Manoel

Lúcida, hoje aos 92 anos de idade, Joana Freitas lembra o parto e a única vez que viu seu filho Manoel de Jesus Freitas, sem poder tocá-lo, em 19 de dezembro de 1972, antes de a criança ser levada ao Educandário Santo Antônio.

“Quando eu senti as dores, mandaram buscar uma parteira, de nome Gilda, que morava do outro lado da praia do Bonfim. ei a noite com dor e uma hora da madrugada tive o menino. A parteira perguntou se eu queria ver a criança. Eu disse que sim. Aí, ela veio com o menino todo enrolado em um pano e descobriu apenas o rosto. Então eu vi que ele tinha um sinal no meio da testa. Vários filhos meus têm esse sinal entre os olhos”, enfatiza.

A maior preocupação de Joana Freitas, durante a sua internação, era saber como estavam seus filhos. Nos breves encontros com o marido, autorizados pela istração da Colônia do Bonfim, ela recebia notícias dos que haviam ficado em Miranda. Sobre Manoel, era sempre informada pelas freiras vicentinas Maria Pinto e Maria Silva (in memoriam): “a criança era bonita e estava bem”.

Em abril de 1973, quando Manoel tinha aproximadamente quatro meses de idade, Joana Freitas recebeu a visita de uma estrangeira que se comunicava através da freira canadense Rejeanne S.G.M (falecida em 09/12/2018), da Ordem Irmãs de Caridade de Montreal. “Ela tinha visto Manoel no Educandário Santo Antônio e desejava adotá-lo e levar meu filho para a Holanda. Eu disse que não doaria, ainda mais sem a permissão do pai. A estrangeira insistiu na adoção e chegou a falar com meu marido, mas ele também negou a adoção”, detalha. Após esse episódio, Joana Freitas conta que o pai tentou resgatar o filho no Educandário Santo Antônio, mas não lhe foi permitido ver a criança.

Joana Freitas lembra que, no mês seguinte, próximo ao Dia das Mães, ao não ver Manoel no grupo de crianças do Educandário Santo Antônio que foram visitar suas mães na Colônia do Bonfim, perguntou a uma funcionária daquela instituição pelo filho e recebeu como resposta que o menino estava bem, era muito parecido com ela, tinha o apelido de ‘Careca’ e estaria dormindo.

Em setembro de 1973, ados três meses da proposta de adoção de Manoel pela estrangeira, José Romão Freitas (in memoriam), também hanseniano e internado na Colônia do Bonfim, contou à sua irmã Joana Freitas do falecimento do sobrinho. O óbito lhe foi informado pela freira vicentina Maria Silva. “Por que a freira não deu a notícia diretamente para minha mãe?”, questiona Dorinha Marinho.

O comunicado seco da morte causou um novo trauma em Joana Freitas e deixou-a inerte. O marido, morando no interior do Maranhão e cuidando dos outros nove filhos, também acreditou na notícia do falecimento de Manoel. Naquele tempo, eles preferiram esquecer o novo trauma.

Denaide foi “desenterrada”

Desde 2007, a família Freitas, liderada por Dorinha Marinho, faz uma busca incansável para obter informações sobre o destino de Manoel. “Queremos saber onde está meu irmão. Ele foi dado como morto e nunca tivemos qualquer documento que comprove o óbito ou o enterro. O Educandário Santo Antônio nos deve explicações porque meu irmão vivia lá e está desaparecido”, enfatiza Marinho.

A dúvida sobre o óbito de Manoel Freitas só aflorou em 2007, 35 anos depois da notícia de sua morte, quando as famílias de ex-hansenianos submetidos a isolamento e internação compulsórios em hospitais-colônia começaram a se organizar para receberem o pagamento da pensão especial mensal e vitalícia (Lei nº 11.520/2007). Naquela ocasião, Dorinha Marinho conheceu a ex-hanseniana Ângela Maria de Jesus Melo, que relatou ter ado por experiência semelhante com sua filha Denaide Maria Melo Carvalho, também nascida na maternidade da Colônia do Bonfim, em 18 de agosto de 1978 e dada como morta/enterrada.

Diferente de Joana Freitas, Ângela Melo diz ter “travado uma guerra” para obter informações do Educandário Santo Antônio. “Em nenhum momento me deram documento. Aí, eu disse: ‘Podem fazer comigo o que quiserem, mas não vão me impedir de saber onde está minha filha’. Eu ameacei fazer greve de fome e denunciar na imprensa. Eu tinha um parente na Polícia Militar, que me deu todo apoio”, declara. Na sua saga para “desenterrar” a filha, as idas à portaria do Educandário Santo Antônio foram constantes. “Depois de muita insistência, desde as primeiras horas da manhã, eu consegui entrar um dia às três da tarde. Então, eu vi a minha filha”, revela.

Denaide Carvalho mora atualmente com o marido e seus filhos no município de Raposa, na região metropolitana de São Luis.

Inquérito no MPF

Ao tomar conhecimento do caso de Ângela e da filha Denaide, e como não obtinha respostas sobre eventual adoecimento, internação em hospital, morte e destino do corpo pelo Educandário Santo Antônio durante mais de 10 anos, Dorinha Marinho apresentou denúncia à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (MPF) em 2024.

O procurador Marcelo Santos Correa instaurou a Notícia de Fato nº 1.19.000.000620/2024-05, convertida em Inquérito Civil em 14 de agosto de 2024. Nos autos, Dorinha Marinho apresentou o batistério de Manoel de Jesus Freitas e duas listas de registro da internação da criança no Educandário Santo Antônio.

“Fui várias vezes ao Educandário Santo Antônio em busca de informações e documentos que comprovassem a morte de meu irmão. Depois de muito argumentar e avisar que eu pediria judicialmente as informações, lá pela quarta visita eu recebi um documento que mostrava que Manoel esteve vivo no berçário até 15 de março de 1973”, assevera Marinho.

Na relação de internos do berçário, assinada pela então presidente do Educandário Santo Antônio, Maria Inês Saboya, consta o nome de Manoel com o sobrenome Freire (e não Freitas), então com dois meses de idade. Em outra folha, logo abaixo do nome da criança, estão os nomes dos pais Ângelo Elesbão e Joana Teresinha, mostrando que Manoel de Jesus Freitas e Manoel de Jesus Freire eram a mesma criança.

Cópia de documento fornecido pela “Sociedade Eunice Weaver”/Educandário “Santo Antônio” e assinado, registrando a criança Manoel de Jesus Freire no berçário daquela instituição, aos dois meses de idade
Cópia de documento fornecido pela “Sociedade Eunice Weaver”/Educandário “Santo Antônio” mostrando Manoel de Jesus Freire como filho de Ângelo Elesbão e Joana Teresinha

“Não há dúvidas de que o meu irmão esteve lá desde o dia do nascimento, em 19 de dezembro de 1972, até a data da da então presidente Maria Inês Saboya, em 15 de março de 1973. Manoel de Jesus Freitas estava com dois meses de idade, quase completando três meses”, calcula Marinho.

A reportagem solicitou entrevista com a direção do Educandário Santo Antônio, presidido atualmente por Fátima Maria Bezerra Sabóia, mas ela não quis falar sobre o desaparecimento da criança. A instituição se manifestou no inquérito do MPF em 19 de agosto de 2024, respondendo os questionamentos do procurador.

Sobre a direção da entidade, o ESA informa que a gestão de Maria Inês Saboya encerrou em 1997, quando ela faleceu. Desde então, a presidente é Fátima Maria Bezerra Sabóia, em uma istração composta por 23 membros, não havendo mais “qualquer relação com a Colônia do Bonfim, nem mesmo com internos advindos da Colônia.”

O ESA reconhece que as crianças “advindas do Bonfim eram entregues pelas freiras da Colônia”; no entanto, “as freiras não participavam da rotina ou atividade do Educandário e nem o Educandário tinha vínculo com as Freiras.”

A instituição registra que desconhece qualquer negativa de contato de pais ou familiares com crianças internas. No mesmo documento, apensado ao inquérito, o ESA afirma desconhecer o fato relatado por Ângela Melo sobre a filha Denaide Carvalho dada como morta e enterrada.

Outra justificativa no inquérito diz não haver pedidos formais de documentos sobre Manoel. “Não há nenhum registro na Instituição de qualquer familiar ou pessoa com pedido de informações do então menor à época de nome Manoel de Jesus Freitas. Não houve qualquer pedido de documentos ou informação, nem verbal, nem por telefone, nem por escrito e nem judicialmente”, justifica.

Segundo o ESA, “em buscas pelos arquivos, não foi encontrado nenhum documento com o nome de Manoel de Jesus Freitas. O único documento encontrado em nossos arquivos são fichas do berçário que consta como nome de Manoel de Jesus Freire, com 2 meses, ou seja, nascido em janeiro de 1973, já que o documento é datado de 15 de março de 1973. Pelas informações encontradas não parece se tratar da mesma criança mencionada na notícia de fato.”

Adoções sob suspeita

A vulnerabilidade de crianças nascidas de mães hansenianas na Colônia do Bonfim, nos anos 1970, provocou desdobramentos inusitados e até adoções sem processo judicial. O Canadá era um dos principais destinos dessas crianças, algumas delas intermediadas pelas freiras da Ordem Irmãs de Caridade de Montreal.

Um dos casos apurados pela reportagem foi a adoção de Claudiomar da Conceição Ribeiro, filho biológico de Antonio Soares Ribeiro e Maria de Lourdes Conceição Ribeiro, dois ex-hansenianos já falecidos.

Claudiomar da Conceição Ribeiro nasceu na Colônia do Bonfim em 14 de fevereiro de 1976, mas só foi registrado em 17 de março de 1977, um dia antes de sua adoção pelo casal canadense Yves Denis Aubin e Rachel Bessette Aubin, ando a chamar-se Claudiomar Pascal Aubin.

A participação direta do Educandário Santo Antônio na adoção de Claudiomar Ribeiro se deu através da sua presidente na época, Adelaide Álvares de Carvalho, que foi declarante na certidão de nascimento e procuradora do pai da criança na escritura pública de adoção.

Cópia da Escritura Pública de adoção de Claudiomar da Conceição Ribeiro que teve como procuradora a então presidente da “Sociedade Eunice Weaver/Educandário Santo Antônio”

Em uma procuração, datada de 18 de março de 1977, Antonio Soares Ribeiro, pai de Claudiomar, nomeia como sua procuradora Adelaide Álvares de Carvalho, então presidenta do Educandário Santo Antônio “[…] para os fins específicos de requerer junto à Secretaria da Receita Federal o seu F, bem como, outros requerimentos e documentos quaisquer, relacionados com o outorgante, podendo praticar todos os atos, ar recibo, dar quitação, inerentes aos desempenhos dêste mandado, usar a cláusula ‘ad juditia’, inclusive subestabelecer”.

Cópia da procuração do pai biológico de Claudiomar da Conceição Ribeiro para a então presidente da “Sociedade Eunice Weaver”/Educandário “Santo Antônio” e usada na adoção da criança

Essa “procuração F” não menciona a finalidade de adoção nem foi assinada pela mãe biológica de Claudiomar, Maria de Lourdes Conceição Ribeiro, que era contrária à adoção, mas foi utilizada para essa finalidade junto ao cartório Oswaldo Soares, como se a presidente do Educandário Santo Antônio representasse formalmente o pai e a mãe da criança.

Cartas revelam conexões

Em uma carta para seu filho Claudiomar, datada de 8 de junho de 1995, Antonio Soares Ribeiro menciona ter enfrentado uma “grande barreira” por parte da esposa e de um dos seus filhos para entregar Claudiomar a Yves Aubin e Rachel Bessette, que lhe deram o nome de Claudiomar Pascal Aubin.

É surpreendente que a adoção de Claudiomar Pascal Aubin e a autorização para a sua saída do Brasil tenham ocorrido sem processo judicial e encerradas em apenas cinco dias – de 17 de março de março de 1977, data da certidão de nascimento, até 21 de março de 1977, quando o então vice-cônsul da Embaixada do Canadá no Brasil atestou não haver qualquer impedimento para a saída de Claudiomar Aubin do Brasil.

Documentos da Receita Federal e do BB registram o endereço de Claudimar Aubin na casa das Irmãs de Caridade de Montreal, em São Luís.

A participação direta das Irmãs de Caridade de Montreal fica documentada através de cartas da freira canadense Thérèse Yergeau a Claudiomar Pascal, em fotos e dois documentos emitidos respectivamente pela Receita Federal (DAFF) e pelo Banco Central do Brasil, que indicam a rua Paulino de Sousa, nº 243, no bairro Monte Castelo, em São Luís/Maranhão, como endereço de referência de Claudiomar Aubin no Brasil. O endereço é a residência oficial da Ordem Irmãs de Caridade de Montreal, um dos locais de permanência da freira canadense Rejeanne S.G.M quando estava em São Luís.

Crianças no primeiro plano. No segundo plano, a primeira mulher branca à esquerda, em pé, é Irmã Rejeanne S.G.M; a segunda em pé é a mãe adotiva canadense de Pascal, Rachel Bessette Aubin. A última à direita é a avó de Claudiomar Pascal

Claudiomar Pascal Aubin retornou a São Luís em novembro de 2024 para visitar seus familiares biológicos. “Meus pais canadenses não tinham filhos. Um parente deles, que conhecia a irmã Thérèse Yergeau, sugeriu que eles adotassem uma criança no Brasil com a intermediação dela”, relatou.

Os pais canadenses de Pascal, Yves Denis Aubin e Rachel Bessette Aubin, também adotaram outra criança nascida em São Luis, Marie Julie Aubin, que teria ido na mesma viagem de Pascal Aubin, aos quatro meses de idade, segundo documento de imigração. Na data da viagem, Marie Julie Aubin tinha apenas cinco dias de vida (data de nascimento 19 de março de 1977). Pascal afirma que sua irmã só teria viajado posteriormente com o padre Marcel Laurent e a freira Rejeanne S.G.M.

Já a procura por Manuel Freitas prossegue. Dorinha Marinho fez buscas em dois cartórios de São Luís para tentar encontrar a certidão de nascimento de Manoel de Jesus Freitas ou eventual documentação de doação, mas não há registros nos chamados livros-índice.

Adoção na coluna social

Além da participação direta de Adelaide Álvares de Carvalho na adoção de Claudiomar da Conceição Ribeiro, na coluna Momento Social, publicada no jornal “O Imparcial”, em 16 de janeiro de1972, a colunista e presidente do Educandário Santo Antônio, Maria Inês Saboia, publicou a fotolegenda referente a uma adoção: “Esta criança, linda e loira, foi interna no Educandário Santo Antônio. Aos dois meses, encontrou outros pais boníssimos. Ela agora está com nove meses e manda foto para esta colunista com os seguintes dizeres: ‘Tia Maria Inês: você foi a melhor pessoa que conheci, pois, por seu intermédio ganhei um papai, uma mamãe e três irmãozinhos. Neste Natal desejo a você todas as felicidades do mundo e que no ano novo haja possibilidades de você fazer felizes outros companheiros meu. Meus pais enviam recomendações e votos de feliz Natal e próspero ano novo. Beijinhos do Daniel”’.

A coluna social de Maria Inês Saboia celebra adoção do menino Daniel

No inquérito do MPF, o ESA enfatiza que não era gerido por freiras e refuta tanto a participação em adoções quanto a presença de estrangeiros nas suas instalações. “A Instituição desconhece qualquer pedido de adoção ou presença de estrangeiros em suas dependências, ao contrário, qualquer pedido de adoção sempre obedeceu estritamente a lei e somente ocorreu com autorização e acompanhamento da justiça através de processo judicial. Não há nenhum achado de registro sobre adoção estrangeira, bem como a presença de estrangeiros nas dependências do ESA”, afirma a instituição.

Outro anúncio de morte sem corpo

A reportagem ouviu ainda o relato de Lindalva Soares Lopes, hoje com 60 anos de idade, sobre o desaparecimento da sua irmã Claudeci Cutrim Soares, nascida em 1967 da mãe hanseniana Benedita Cutrim Soares e de Benedito Soares. Mãe e filha, conta Lindalva, foram separadas pela política de isolamento. “Papai, na época, viajou para morar no interior do Maranhão”, recorda.

Segundo a certidão de batismo da paróquia sediada na Colônia do Bonfim, Claudeci Cutrim Soares nasceu em 10 de junho de 1967, mas não há nenhum registro de que foi encaminhada para o Educandário Santo Antônio.

Claudeci Soares nasceu em 1967 e a família
nunca teve informações sobre o seu desaparecimento

Lindalva Soares Lopes explica que a sua mãe, falecida em 1988, morreu sem saber informações da filha separada.

“Nas buscas que eu estou fazendo para ter informações sobre a minha irmã, os relatos que eu tenho são de pedidos insistentes para doar a criança. A minha mãe negou e Claudeci foi dada como morta sem nenhuma comprovação. Eu queria pelo menos descobrir se a minha irmã vive ou se realmente veio a óbito, coisa que minha mãe nunca conseguiu saber e viveu a vida toda com essa incerteza, essa angústia”, enfatizou.

Em suas memórias, Lindalva lembra que quando era criança guarda a imagem da sua mãe chorando, com um papel nas mãos, que seria um comunicado sobre a morte de Claudeci.

Reparação extensiva aos filhos separados

As conseqüências da desagregação de famílias, incluindo os casos de crianças desaparecidas, dadas como mortas ou doadas, motivaram nos anos 1980 a criação do Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), entidade que orienta e acompanha ex-internos de colônias e filhos separados a buscarem as reparações de danos sofridos pela política de segregação.

Desde 2007 a lei indenizatória nº 11.520 garante pensão especial para os pais e as mães afetadas pelo isolamento. Outra lei, nº 14.736/2023 (regulamentada pelo decreto nº 12.312/2024), estabelece a indenização aos filhos de hansenianos isolados em colônias e também aqueles segregados em domicílios ou seringais na região Norte do Brasil.

Segundo o voluntário do Morhan e assessor do gabinete da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Artur Custódio Moreira de Sousa, a política pública indenizatória é uma conquista importante, mas apenas parte da reparação dos danos causados pela segregação. “Tem aparecido casos de localização de filhos e mães e sentimos necessidade de fazer um programa de reencontros de pessoas desaparecidas. Há uma projeção de 20 mil filhos separados que estariam vivos hoje”, pontua.

Ele acrescenta que está em curso o funcionamento da Comissão de Memória e Verdade da Hanseníase, que inclui uma série de iniciativas para apoiar as famílias desagregadas pela política de isolamento compulsório.

Enquanto isso, a nonagenária Joana Freitas espera notícias sobre o seu filho Manoel. Se ele estiver vivo, completou 52 anos de idade em dezembro de 2024.

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Ana Jansen: a rainha em carne e osso e as lendas sobre a poderosa líder política do Maranhão no século 19

Uma versão sintética dessa reportagem foi publicada no TAB Uol.

Motivado por um ódio incomensurável, o comendador e negociante Antonio José Meireles importou da Inglaterra centenas de penicos de louça, tendo ao fundo a fotografia da sua maior desafeta, de tal modo que os usuários pudessem defecar e urinar sobre a imagem dela.

A venda dos urinóis no armazém do comendador foi um sucesso. Entusiasmado com a empreitada, Meireles só não contava com a peripécia da sua algoz. Ela própria acionou emissários para comprar todos os penicos. E quando não restava nenhum exemplar, mandou um grupo de 30 escravos à porta do comendador e, armados com potentosas estacas de pau, estraçalharam os urinóis até virarem pó.

O episódio real, contado na obra “Os tambores de São Luís”, de Josué Montello, é um entre tantos conflitos em que Ana Joaquina Jansen Pereira (1787 – 1869) triturou adversários até a humilhação.

Donana Jansen, Dona Ana Jansen, Donana ou Nha Jança, batizada Ana Joaquina de Castro Jansen, nasceu em São Luís e tinha ascendência nobre de uma família que entrou em decadência.

Herança, prole e poder

Pobre, já era mãe solteira antes do primeiro relacionamento com o coronel português Isidoro Rodrigues Pereira – o homem mais rico do Maranhão. Com ele, na condição de amante, teve cinco filhos antes de casar e mais uma depois do matrimônio.

Quando o coronel faleceu, deixou para Ana Jansen um grandioso patrimônio em terras, dinheiro, imóveis e escravos. Afortunada, ela virou uma personagem central no cenário político e econômico do século 19 na Província do Maranhão.

Habilidosa nos negócios, soube multiplicar a riqueza e associar o dinheiro à política, impulsionando sua família ao núcleo da elite local. Durante quase 40 anos exerceu influência total sobre escravos, desembargadores, chefes de polícia, cobradores de impostos, intelectuais, jornalistas e parlamentares.

Imponente sobrado era o QG da matrona. Foto: Adriano Almeida

O local privilegiado para a tomada de decisões era o suntuoso palacete da rua Grande, no Centro de São Luís, em eventos regados a música e banquetes. “Dia e noite ferviam ali dentro as tricas políticas e os enredos privados da terra”, registrou Jerônimo de Viveiros (p. 80) na obra “Ana Jansen, Rainha do Maranhão”.

Conservadora na política, subversiva nos costumes

Na memória coletiva, o imaginário sobre Ana Jansen está povoado de relatos sobre uma mulher perversa que mandava torturar e matar seus escravos e cometia atrocidades contra os seus inimigos.

A doutora em História Econômica (USP), Marize Helena de Campos, compreende Ana Jansen além do maniqueísmo. “Ela atravessa a história como uma mulher que desafiou regras, lugares, modelos e discursos. Considero um erro qualificá-la como vilã ou heroína. Há que se considerar o contexto em que Ana Jansen viveu e vivenciou seu poder, ideias e práticas”, enquadra.

Ao ficar viúva, antes dos 30 anos de idade, foi companheira do desembargador Francisco Carneiro Pinto Vieira de Melo, gerando mais quatro filhos, sem casar.

Do segundo casamento, com um negociante sediado em Belém do Pará, Antonio Xavier da Silva Leite, não teve descendentes.

Para a doutora em História e professora da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Elizabeth Abrantes, a liderança política e o poder econômico de Ana Jansen incomodavam os homens no contexto de uma sociedade patriarcal, misógina e escravista. “Ela exerce papéis não previstos para o sexo feminino e por isso vai ter muitos opositores, sendo alvo de uma série de boatos, intrigas, calúnias e difamações que vão contribuir para a construção do imaginário negativo que se tem até hoje”, explica.

As lendas e a política real

Não há registros de processos judiciais contra Ana Jansen por morte ou tortura de escravos, diferente do rumoroso julgamento da baronesa Ana Rosa Viana Ribeiro, acusada de torturar e matar um menino negro de oito anos de idade, em 1876.

“As violências do escravismo são injustificáveis, embora fossem parte do sistema. Por isso, algumas histórias atribuídas a Ana Jansen sequer têm racionalidade, como por exemplo mandar matar e jogar os escravos em um poço. Ela era uma comerciante e empresária muito perspicaz e jamais iria ‘jogar dinheiro fora’ ou desperdiçar um patrimônio”, pondera Abrantes.

Computa-se à influência de Ana Jansen a decisão do coronel Isidoro Pereira de doar 2.000$000 (dois contos de réis) à Santa Casa de Misericórdia para criar a Roda dos Enjeitados ou Casa da Roda, projeto filantrópico de acolhida dos bebês de mulheres pobres ou que não podiam fazer o reconhecimento da maternidade porque seriam concebidas fora do casamento.

No Brasil do século 19 só havia dos partidos: o liberal Bem-te-vi e o conservador Cabano.  À época, para alcançar os seus objetivos, as elites lançavam mão dos métodos usuais em uma província escravocrata do Brasil imperial, quando o poder era exercido mediante chantagens, coações, violência física, fraudes eleitorais e corrupção generalizada.

Uma frustração marcante

Embora fosse fiel ao império, a matrona sofreu um revés na sua maior pretensão.

Acostumada a colecionar vitórias contra políticos, homens ricos e intelectuais, Ana Jansen engoliu uma derrota amarga quando teve negado o pedido para obter o título de Baronesa de Santo Antônio junto ao imperador D. Pedro II, em 1843. Entre os argumentos e documentação apresentados no pleito, ela demonstrou a sua atuação para sufocar os rebeldes da Guerra da Balaiada (1838 -1841), o maior levante popular da Província do Maranhão, e a contribuição junto às forças do império na Revolução Farroupilha (1835-1845), no sul do Brasil.

Ela não foi baronesa de direito, mas de fato era a “Rainha do Maranhão”, exercendo o matriarcado em uma sociedade patriarcal.

Entre as suas vítimas constou ainda o político e intelectual Candido Mendes de Almeida, tirado à força de um navio quando tentava largar para o Rio de Janeiro, onde tomaria posse na Assembleia Geral Legislativa. Ele fora ainda desafiado para um duelo à bala pelo filho da matrona, o comandante da Guarda Nacional Isidoro Jansen Pereira. Mendes compareceu ao desafio, mas o adversário, ausente, mandou um recado avisando que o conflito seria resolvido “no cacete” em outro momento.

A vida transborda para os jornais

Em 1843 ela retaliou o ilustrado escritor e professor de grego Francisco Sotero dos Reis, demitindo-o da direção do tradicional Liceu Maranhense. Reis era articulista do periódico “A Revista”, gazeta cabana, adversário do jornal “O Guajajara”, controlado pela família de Ana Jansen.

Não satisfeita, estendeu a perseguição a Nunes Cascais, dono da tipografia onde “A Revista” era impressa. Ele foi sabotado por diversos métodos até ser despejado do sobrado onde funcionava a oficina do jornal. “Na época, era desgraça ser parente de Cascais”, registrou Viveiros (p.42)

Na percepção do doutor em História (Universidade Federal Fluminense) e professor da Universidade Estadual do Maranhão, Marcelo Cheche Galves, os jornais da época representavam a imprensa artesanal e pré-capitalista. “As publicações viviam da política, não se pagavam com as tiragens ou anúncios e tinham vida efêmera. Eram engajados e defendiam abertamente as suas posições sem a preocupação com a ideia de neutralidade”, especifica.

A edição de 6 de junho de 1840 o jornal “O Guajajara” estampava na primeira página: “…na sua decima taquarada fez huma fala energica contra os dezordeiros e insurreição dos pretos, e expendendo fortes razões, concluio sem rebuço: Guerra e mais guerra, aos rebeldes e pretos levantados.”

O alvo do ataque eram os “balaios”, referência ao apelido de um dos líderes da Guerra da Balaiada, Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, artesão que fabricava um tipo de cesto de palha denominado “balaio”.

A guerra da água

A “Rainha do Maranhão” monopolizava a distribuição de água na capital da província, em sociedade com o empresário espanhol Santos José da Cunha. Seus escravos coletavam nas fontes ou chafarizes e vendiam o líquido de casa em casa, em pipas sobre carroças puxadas a burro.

Na época retornava de Paris o recém-formado engenheiro Raimundo Teixeira Mendes e logo vislumbrou um projeto de canalização da água em São Luís. Seu empreendimento visava ao lucro e oferecer o serviço mais ágil e higiênico.

Diante da ameaça do concorrente, Ana Jansen armou o combate, narrado por Viveiros: “Ainda não tinham decorridos oito dias da inauguração da Companhia de Águas do Rio Anil, e aparecia boiando nas águas do depósito do Campo do Ourique um gato morto, já em putrefação. Os negros da Rainha espalhavam a notícia – gato morto na caixa d’água -, que o povo repetia pelas ruas da cidade.” (p. 49).

Chafariz no Palácio Cristo Rei, no Largo dos Amores, remonta à época em que não havia água encanada na cidade. Foto: Adriano Almeida.

Depois do gato sucederam outras sabotagens. Enquanto a água encanada faltava, as carroças seguiram abastecendo a população por mais 15 anos. Teixeira Mendes faleceu e o empreendimento faliu. Só em 1874 uma nova empresa assumiu o projeto e conseguiu distribuir água encanada para a cidade.

E quando a serpente acordar…

Ana Joaquina Jansen Pereira Leite morreu aos 82 anos, em 11 de abril de 1869. Foi sepultada no cemitério dos os (hoje Estádio Municipal Nhozinho Santos). Deixou em testamento a recomendação para celebrarem 200 missas de corpo presente. Sua vida marcante foi adaptada para o teatro na peça “Ana do Maranhão”, da escritora Lenita Estrela de Sá, e ganhou versões para leitores infantis dos autores Beto Nicácio e Wilson Marques.

A serpente na Lagoa da Jansen é uma das marcas da cidade. Foto: Adriano Almeida

Dos seus 11 filhos, dez foram concebidos sem casamento. A prole computa ainda 53 netos e 14 bisnetos. Uma das suas descendentes, Terezinha Jansen, destacou-se no cenário da cultura popular do Maranhão.

Entre fatos, lendas e mistérios, a Rainha do Maranhão vive no imaginário da população. Uma das fabulosas histórias remete à “carruagem fantasma” de Ana Jansen, que altas horas da noite parte de um cemitério puxada por mulas sem cabeça, guiada por um cocheiro negro decapitado. Esse arquétipo seria a expiação dos pecados da matrona pelas supostas maldades praticadas em vida.

Centro Histórico de São Luís é cenário de lendas. Foto: Adriano Almeida

Na famosa Lagoa da Jansen, cartão postal de São Luís, flutua a grandiosa escultura de 74 metros da “serpente encantada”, ilustrando uma cobra gigante que cresce ao longo dos séculos nos subterrâneos da cidade. No imaginário das lendas, a serpente remete ao sebastianismo.

O rei de Portugal, Dom Sebastião, desaparecido em 1578, no Marrocos, ressurge nas noites de lua cheia na forma de um touro encantado com uma estrela na testa, cavalgando sobre as dunas da Ilha dos Lençóis, em Cururupu, a 200 km da costa ocidental do Maranhão. Se alguém tocar na estrela, a serpente acorda em São Luís e a cidade desaparece tragada pelas águas.

Presente na obra do padre Antônio Vieira, o sebastianismo transborda para os cantos ritualísticos do tambor de mina (ouça aqui):

Rei, ê Rei
Rei Sebastião,
Rei, ê Rei
Rei Sebastião,

Quem desencantar Lençóis
Vai abaixo o Maranhão

IMAGEM DESTACADA: Imagem do livro ‘Perfil de Ana Jansen’ (1985), de Waldemar Santos / Imagem: Reprodução.

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Aos ‘dondocas’ de plantão: a Península da Ponta d’Areia não é condomínio fechado!

Por Walkir Marinho

Muito antes de qualquer processo de expansão imobiliária, a área litorânea de São Luís que antes era tratada carinhosamente por “Pontinha” da Ponta d’Areia e hoje é chamado de Península, já era visitada pelos apreciadores de um belo pôr do sol e pelos adeptos das “pedras de responsa” que frequentavam o Coqueiro Bar. Isso sem contar com os assíduos frequentadores do Iate Clube e do glamoroso Restaurante Tia Maria, com suas vistas privilegiadas para o mar e Centro Histórico da cidade.

Ainda bem antes do surgimento dessas dezenas de espigões verticais com seus 15 pavimentos, muitos deles, dotados de um apartamento por andar, e do próprio Espigão Costeiro, já existia ali, o Forte de Santo Antônio da Barra com sua capelinha. É bom dizer também que, em meados da década de 1980, foi instalado no local o Memorial Bandeira Tribuzzi, uma justa homenagem ao escritor e poeta autor da canção ‘Louvação a São Luís’.

Por outro lado, bem mais recente, nesta mesma região da capital maranhense, o Governo do Estado ensaiou instalar um terminal marítimo de ageiros e cargas para facilitar o serviço de travessia entre a Ilha de São Luís e as regiões da Baixada Maranhense e Litoral Norte. No entanto, após o repúdio de alguns moradores da Península, cujo eco adentrou pelos corredores palacianos, percebeu-se que o governo recuou e não falou mais do projeto. Talvez, pelo fato de o terminal portuário ter grande alcance popular e isso poderia causar efeito colateral, como tirar o sossego e prejudicar a elitização do local, além de “misturar gentes”. Esse assunto teve ampla repercussão nas redes sociais.

Agora, mais precisamente no último fim de semana, a Península da Ponta d’Areia voltou com toda força ao cenário das redes sociais, após uma noitada regada a esporte, pagode, farra, orgia e ‘otras cositas más’. Tudo por causa de uma área de faixa de areia denominada Posto A, onde foi instalado um “recinto fechado”. Uma espécie de cópia malfeita do que já existe na orla marítima do Rio de Janeiro.

Autoridades públicas, seguindo as normas e medidas de segurança sanitárias e ambientais, para evitar aglomerações, “lacraram” o espaço e isso virou motivo de amplo debate entre moradores da Península. Alguns chegaram a dizer, como verdadeiros “donos do pedaço”, que o tal ambiente é direcionado única e exclusivamente para habitantes desta área nobre. Como se essa região da capital de todos os maranhenses fosse reserva particular, de propriedade somente de alguns que moram nos arranha-céus revestidos de pastilhas coloridas e vidraças em fumê, porém, erguidos quase que, sem critério de saneamento básico.

Acontece que a Península da Ponta d’Areia, como qualquer outro aglomerado ou conglomerado urbano de São Luís, é área comum a todos. Independente de padrão social e poder aquisitivo. A Península da Ponta d’Areia não é um “condomínio fechado” e mesmo que fosse, todos têm o direito de ir e vir.

Imagem destacada: Vista aérea da Península da Ponta d’Areia e Espigão Costeiro (Foto: Reprodução)

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Condomínio da Península tem síndico bolsonarista e porteiro sem máscara

Discreto morador de um prédio localizado no cobiçado reduto imobiliário de São Luís segredou ao blog uma situação inusitada.

Apesar de todas as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e das diretrizes do Governo do Maranhão para o uso de máscaras, um dos funcionários do referido condomínio trabalha durante os seus turnos sem o equipamento de proteção.

Evangélico sectário, o porteiro está sempre acompanhado de uma bíblia enorme e ouve com frequência os programas de rádio da Igreja Universal do Reino de Deus.

O síndico do prédio, bolsonarista dos mais radicais, até agora não tomou providências para adequar o funcionário às orientações da OMS. Vez por outra, o gerente do condomínio, no alto do seu apartamento, solta da sacada o berro “mito” quando o presidente Jair Bolsonaro faz pronunciamentos em rede nacional de rádio e TV.

As fontes serão mantidas em sigilo, principalmente para proteger o emprego do funcionário da portaria, que pode sofrer represálias.

A Península, que na Geografia é rigorosamente a Ponta d’Areia, reúne os condomínios de apartamentos mais caros do Maranhão, com preços exorbitantes até mesmo se comparados à realidade do mercado imobiliário nacional.

Para lá houve a transferência dos chamados “novos ricos”. Embora seja o lugar mais caro e luxuoso de São Luís, a Península vive as contradições da cidade: esgotos transbordantes, ruas esburacadas e os carros-pipa socorrendo a falta d’água.

Nesse lugar exótico o deputado federal Edilázio Junior (PSD) proclamou com bastante antecedência o isolamento social da elite ludovicense, ao se contrapor de forma sórdida ao projeto de um porto que ligaria a Ponta d’Areia à Baixada Maranhense (reveja aqui).

O que interessa?

Indo além dos aspectos pitorescos do fato, o que mais importa é analisar como os tons do fascismo reúnem pessoas de classes sociais distintas e vidas economicamente opostas.

O síndico com espírito burguês está sintonizado nos mesmos ideais do evangélico da Universal do Reino de Deus que nos seus dias de turno pega ônibus, sem máscara, para se deslocar entre o condomínio de luxo onde trabalha e a sua casa na periferia de São Luís.

Do topo ao teto, as ideias fascistas encontram abrigo em diferentes classes sociais mediante discursos e práticas antigas sempre renovadas, fazendo eco nas novas gerações: (1) a volta ao ado de respeito aos valores e às tradições da família ocidental cristã; (2) a ideia fixa de construir um inimigo que precisa ser destruído – o comunismo; e (3) a perspectiva de futuro – o Brasil voltará a ser grande novamente.

Tudo isso sistematizado em dois bordões encaixados na promessa de que a vida será melhor no reino do bolsonarismo. Na campanha eleitoral bradavam “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”; na gestão, “Pátria amada Brasil”.

Apesar do tom nacionalista, os contornos do fascismo à brasileira incorporam um severo grau de submissão geopolítica, principalmente em relação aos Estados Unidos e Israel, no processo de alinhamento à onda conservadora que varre o mundo.

Para Trump é preciso destruir os mexicanos invasores e o terrorismo islâmico. Bolsonaro mira suas armas nos comunistas e na esquerda em geral; ou seja, o inimigo revisitado que já estava presente na Doutrina de Segurança Nacional, um dos pilares do golpe militar de 1964.

A ideia de criar um inimigo (e eliminá-lo!) serve para manter o clima de guerra necessário à alimentação ao fascismo. Vem daí o interesse pela flexibilização do uso de armas para abastecer a indústria bélica na esteira da aproximação da família do presidente com as milícias.

É, pois, esse caldo cultural que fascina tanto o síndico quanto o porteiro. Eles se encontram no ódio às mulheres libertárias, aos artistas, pobres, negros, índios, ambientalistas, gays em geral, a China etc. Todo esse conjunto de personagens é julgado e condenado à eliminação.

Correlato ao governo autoritário, o bolsonarismo referenda no seu protótipo de família a base da tirania: o pai opressor, a mulher submissa e os filhos obedientes.

Nas madrugadas, quanto todos nós estamos dormindo, o porteiro ouve no rádio repetidas vezes o pastor da Universal pregar o ódio maquiado de amor. Essa mensagem chega depois em outros formatos de mídia pelo WhatApp e vai sendo compartilhado infinitamente.

Assim, o fascismo opera dentro das subjetividades, nos ambientes mais profundos do animal humano.

O porteiro e o síndico também surfam na onda obscurantista de negação da Ciência e do Jornalismo. Ambos detestam o noticiário, repudiam a verdade, têm ojeriza aos critérios objetivos e desprezam a pesquisa. De quebra, querem o SUS e a Universidade pública privatizada.

Eles preferem meias verdades e mentiras inteiras a uma reportagem com base em fatos reais. Vale a crença no lugar da notícia ou da descoberta científica.

Nessa temporalidade conservadora, a luta de classes, que teoricamente oporia o síndico de espírito burguês e o trabalhador da portaria, perde a batalha para a unidade entre ricos e pobres em nome da antipolítica materializada em vários componentes: ódio, revanchismo, descrédito nas instituições (Judiciário, Ciência, Jornalismo etc), fundamentalismo religioso,  ressentimento…

Os tons fascistas necessitam ainda de uma permanente fogueira acesa com ofensas e caricaturas proferidas pelos protagonistas do próprio governo. Essa é uma das formas de manter a resistência paralisada, presa à bolha conservadora, em especial nas redes sociais.

Aquilo que era latente em um terço da população brasileira e no espírito do síndico da Península aflora na representatividade do presidente eleito pelo voto direto. Burgueses e proletários regozijam-se no “mito” depravado que usa o nome de Deus em vão, agride, ameaça, xinga e despreza até mesmo seus aliados.

Imagem destacada / reprodução / capturada neste site /